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A sombra persistente da escravidão: a marginalização e exclusão usuários de drogas no Brasil

  • Foto do escritor: Felipe De Nadai
    Felipe De Nadai
  • 15 de mar.
  • 7 min de leitura

Atualizado: 6 de abr.

Multas aos usuários de drogas no Paraná

Uma composição poderosa e sombria. No centro, uma balança da justiça em desequilíbrio, com um prato cheio de algemas e o outro com seringas e comprimidos. Ao fundo, uma favela iluminada pela luz fraca de postes, contrastando com a silhueta de um prédio do governo

O Brasil é um país ceifado de sonhos manifestos desde as primeiras embarcações e espelhos serem avistadas. À partir do esquema global da exploração da mão de obra colonizada o país ainda se encontra sob a sombra de um passado que insiste em lançar sua penumbra ao futuro. Nos mais de 300 anos instituídos do negócio - estratosfericamente lucrativo - culminado na abolição da escravidão, em 1888 sua assinatura foi uma foi apenas uma votação no Senado brasileiro. Com votos contra! As estruturas de poder moldadas durante séculos de opressão, adaptaram-se à nova realidade e encontram formas mais sofisticadas de se manifestarem, oprimirem e perpetuarem discriminação e desigualdade. No Brasil colonial, esse poder se materializava neste espaço de não-ser entra a Casa Grande e a Senzala enquanto hoje, manifesta-se nos centros das capitais com sua população destinada ao frio da noite e raios ultra violentos durante o dia. E não apenas durante os raios solares do dia que há ultra violência, por essa manifestação é invocada e materializada na violência policial que mata jovens nas periferias e os atira às prisões já superlotadas, em um sistema que funcionam como depósitos de corpos indesejáveis.

Michel Foucault, em sua análise do biopoder, explica como o Estado gerencia populações através de mecanismos que regulam a vida e a morte, a liberdade e o cerceamento. No século XIX, leis como o Código Criminal do Império (1830) definiam a escravidão como um “direito de propriedade”. Hoje, projetos que propõe multar usuários de drogas em um salário mínimo atualizam essa lógica, transformando corpos dissidentes em fontes de lucro para os fundos estaduais de drogas.

Um close-up dramático das mãos de um homem negro algemado, com cicatrizes visíveis e marcas de trabalho árduo. Ao fundo, uma parede de tijolos pichada com frases de protesto e palavras como "justiça" e "liberdade". Foco nas mãos e nas cicatrizes, com o fundo levemente desfocado

No século XIX, médicos como Nina Rodrigues (1862-1906) defendiam que negros eram “naturalmente propensos à loucura”. Essa pseudociência, conhecida como determinismo racial, justificava a exclusão de libertos dos sistemas de saúde, ensiono, empregos...

O que o sociólogo Eduardo Santos chama de “enegrecimento da loucura” persiste: no Paraná, 72% dos usuários atendidos nos Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS AD) são negros, mas apenas 28% recebem tratamento continuado (SESA, 2023). A criminalização de usuários agrava esse cenário. Um jovem negro multado em R$ 1.000 (valor proposto no Proposta 005.00011.2025) terá seu nome inscrito em dívidas ativas, perdendo acesso a programas sociais e ao Sistema Único de Saúde (SUS). Essa exclusão reflete a pós-abolição mal estruturada, quando ex-escravizados eram impedidos de alugar terras por dívidas fictícias. Como observa a historiadora Lilia Schwarcz, “a abolição foi uma liberdade de papel: sem terra, sem saúde, sem direitos”.

Pan-óptico é um termo utilizado para designar uma penitenciária ideal, concebida pelo filósofo e jurista inglês Jeremy Bentham em 1785, que permite a um único vigilante observar todos os prisioneiros, sem que estes possam saber se estão ou não sendo observados. O medo e o receio de não saberem se estão a ser observados leva-os a adotar o comportamento desejado pelo vigilante.
Concepção inicial de panóptico de Jeremy Bentham.1785

O controle sobre o corpo e o movimento dos escravizados é fundamental para a manutenção da ordem escravocrata, promovendo uma auto vigilância constante: algo que Foucault descreveria em Vigiar e Punir, o panóptico que vive em todos, este Grande Outro que estimula a restrição da liberdade de preambular em espaços públicos com suas cores e trejeitos, a restrição da cultura mesclada entre seus antecessores e a cultura local, e a proibição de qualquer forma de organização social impunham limites intransponíveis à vida dos escravizados, impedindo-os de construir laços comunitários e de se organizar para lutar por seus direitos. Essa estratégia de controle se estendia à esfera cultural e religiosa.

Com a abolição da escravidão, esses mecanismos de controle social não se dissiparam, mas sim se metamorfosearam, adaptando-se e sofisticando-se à novas ordens sociais, mas ainda assim sendo apto a mantendo sua essência desigual e hierárquica. O racismo enraizado nas profundezas da sociedade brasileira, tornou-se o principal instrumento para justificar a discriminação e a desigualdade, designando a exclusão social da população negra e impedindo sua plena integração na sociedade. As estruturas de poder, construídas durante séculos de exploração humana permaneceram intactas, garantindo a exclusão e a manutenção dos privilégios de uma retumbante classe dominante.

O Brasil é pioneiro na judicialização do usuários de substâncias. Ao menos na América: a "Lei do Pito do Pango", promulgada em 1830 no Rio de Janeiro, representa um marco na história do proibicionismo e do controle social no Brasil. A lei proibia o uso do cachimbo utilizado para fumar maconha, não se restringia apenas à substância em si, mas também tinha como alvo as práticas culturais e religiosas afro-brasileiras associadas ao seu uso. A maconha utilizada em rituais religiosos e em momentos de socialização por comunidades afro-brasileiras era vista como uma ameaça à ordem social e moral da época, dominada pelos alfabetizados e donos de terras: ou seja, pessoas brancas. A "Lei do Pito do Pango" se insere em um contexto de controle social e repressão à cultura africana trazida ao Brasil, que se mantém mesmo mais de 100 anos após a abolição da escravidão. Ao criminalizar o uso da maconha e seus instrumentos, a lei buscava reprimir as manifestações culturais e religiosas afro-brasileiras, que muitas vezes utilizavam a erva em seus rituais. Essa criminalização seletiva se torna ainda mais evidente quando contrastada com a permissividade em relação a outras substâncias como o álcool e o tabaco, que mesmo causando danos significativos à saúde, não foram alvo de proibições semelhantes.

Analisar a "Lei do Pito do Pango" sob a ótica do conceito de "colonialidade do poder" de Aníbal Quijano: a colonialidade persiste mesmo após a independência das colônias, perpetuando as estruturas de poder e dominação racial.

Uma representação visual da "Lei do Pito do Pango" de 1830. Uma rua de paralelepípedos no Rio de Janeiro colonial, com soldados em uniformes da época revistando pessoas negras e apreendendo cachimbos de maconha. Ao fundo, uma igreja imponente e casas de senhores de engenho, contrastando com a pobreza e a marginalização das pessoas negras.
Lei do Pito do Pango,

Ao pensar as políticas de drogas no Brasil, ao longo de sua história, têm se caracterizado por uma abordagem proibicionista e punitiva, que criminaliza o usuário e negligencia as questões de saúde pública. Essa abordagem, enraizada em preconceitos e estigmas, tem como consequência o encarceramento em massa, a superlotação do sistema prisional e a violação sistemática de direitos humanos, especialmente da população negra e pobre. A "guerra às drogas", desde anunciada por Nixon, ecoa do passado o discurso bélico e autoritário como alvo principal a população marginalizada social, física e geograficamente, que é submetida a abordagens policiais violentas, prisões arbitrárias e julgamentos sumários. Já as políticas de saúde, por sua vez, são relegadas a um segundo plano sendo o acesso ao tratamento para dependência química ainda é precário e insuficiente. Mesmo com a robustez e capilaridade do SUS, percebe-se que a ineficácia dessa política de drogas se configura como uma nova forma de controle, colocando as drogas como protagonistas das mazelas sociais, em vez de serem tratadas como um problema de saúde pública, tornam-se um instrumento para a seleção, repressão e o encarceramento. Essa criminalização seletiva se manifesta na desproporcionalidade da população carcerária negra, que representa 70% dos presos no Brasil, sendo que a maioria está presa por crimes relacionados às drogas.

Cento e trinta e seis anos depois, em março de 2024, o Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas do Paraná (CONESD) rejeitou em sua plenária, por 9 votos a 4, projetos que multavam usuários de drogas. A votação dividiu instituições: enquanto a Polícia Militar (PMPR) e a Federação Paranaense de Comunidades Terapêuticas (COMPACTA) apoiavam as multas, entidades como a Defensoria Pública (DPE) e o Conselho Regional de Psicologia (CRP) as rejeitaram. A disputa reflete a mesma dicotomia no século XIX: de um lado, o controle punitivo de corpos racializados; de outro, a defesa de direitos humanos e saúde pública. Os números corroboram: no Paraná, 40,86% dos presos por drogas são negros ou pardos, embora representem apenas 30% da população (pretos/pardos). Essa discrepância revela uma verdade incômoda: a criminalização de drogas é, antes de tudo, uma estratégia de gestão étnica. As propostas legislativas, longe de representarem um avanço na política de drogas, configuram-se como uma nova forma de de aprisionamento dos corpos e mentes em um novo ciclo de exclusão e sofrimento. Como em 1888, quando o destino de 600 mil pessoas foi decidido por uma votação, hoje, o debate sobre as drogas também se encontra polarizado entre proibicionistas e antiproibicionistas, como evidenciado na votação do Conselho Estadual de Políticas Públicas sobre Drogas do Paraná (CONESD) em março de 2024. Essa persistência histórica da exclusão social e política de grupos marginalizados, decidida por meio de votações e disputas de poder, levanta questões importantes sobre a representatividade e a justiça social em nossa sociedade.

A entidade COMPACTA, que votou a favor das multas, gerencia 30 comunidades terapêuticas no Paraná, muitas financiadas pelo poder público. Essas instituições, de viés religioso e sem base científica, lucram com a abstinência compulsória, ignorando práticas de redução de danos.

Os projetos de lei se inserem nesse jugo de políticas proibicionistas e punitivas, visando penalizar e criminalizar aqueles que fazem uso de substâncias ilícitas, em vez de oferecer tratamento e apoio ao proporem a aplicação de multas para aqueles que forem flagrados consumindo drogas em locais públicos. Ignorando as evidências científicas que demonstram que a punição não é eficaz para combater o problema das drogas. Pelo contrário, a criminalização do usuário aumenta a marginalização, dificulta o acesso ao tratamento e contribui para o aumento da violência e da criminalidade. Indiscutivelmente, a aplicação de multas onera ainda mais a população em situação de vulnerabilidade social, que já enfrenta dificuldades para acessar serviços básicos como saúde, educação e moradia.

A manutenção da lógica de exclusão e punição direcionada a um fenótipo específico é um projeto de Estado há mais de dois séculos.

A consideração lógica à partir dos autonomia do sujeito, da preservação de volição, de seu desejo é que o acesso ao tratamento para dependência química deve ser ampliado e garantido a todos, com serviços de qualidade e humanizados respeitando a dignidade e os direitos das pessoas que buscam ajuda. As políticas de redução de danos, que visam minimizar os impactos do uso de drogas na saúde e na vida social, devem ser implementadas e fortalecidas, com foco na prevenção de doenças, na promoção da saúde e na reinserção social dos usuários de drogas através de uma lógica pragmaticamente acolhedora.

Apontar a saúde pública como um papel fundamental na construção de uma sociedade menos injusta e inclusiva, que garanta o acesso à saúde para todos, sem discriminação de cor, classe social ou condição de usuário de drogas como um possível caminho.

O Sistema Único de Saúde (SUS), um dos maiores sistemas públicos de saúde do mundo, deve ser fortalecido e valorizado, mesmo após recorrentes ataques em gestões austeras ou mesmo progressistas. É preciso garantir o financiamento adequado, a qualificação dos profissionais e a ampliação da rede de serviços, para que todos tenham acesso à saúde de qualidade, independentemente de sua condição social ou econômica.

Os projetos de lei que multam usuários de drogas no Paraná e em Curitiba representam um retrocesso nas políticas de drogas e perpetuam a lógica de exclusão e punição que marcou a história do Brasil. Ao ignorar as evidências científicas, mantém a violação de direitos humanos e aprofundam as desigualdades sociais e raciais, revelando a persistência da sombra da escravidão na sociedade brasileira. Ao analisar-se a trajetória histórica do controle social no Brasil, desde os tempos da escravidão até as atuais políticas de drogas, podemos observar a persistência de uma lógica punitiva e excludente que tem como alvo principal a população negra e pobre. A criminalização do usuário de drogas não resolve o problema, mas sim o agrava, perpetuando o ciclo de sofrimento, exclusão e marginalização. Romper com essa lógica e investir em políticas de saúde pública que promovam o acolhimento necessário para o usuário decidir seus caminhos.

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