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Ego, procurado vivo ou morto:

  • Foto do escritor: Felipe De Nadai
    Felipe De Nadai
  • 11 de mai.
  • 8 min de leitura

Atualizado: 18 de ago.


Uma exploração psicodinâmica da “morte do ego” em experiências psicodélicas


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A experiência induzida por substâncias psicodélicas envolve, de forma frequente mas não exclusiva, alterações profundas na consciência. Uma das mais enaltecidas e discutidas é a convencionada "morte do ego", também referida como "perda do ego" ou mesmo "dissolução do ego".


A morte do ego é caracterizada por uma "perda completa da identidade subjetiva", uma redução das fronteiras que convencionalmente separam o Eu de outros objetos - corpos animados ou não - e do terrenos mundano. Indivíduos relatam uma sensação de perder o seu sentido de identidade, o que pode eliciar estados de unidade cósmica, uma conexão profunda com o universo - também chamado de "conexão com o todo" - com uma entidade divina ou com todos os seres vivos, em suma, um sentimento similar ao que se convencionaria como “oceânico” ou mesmo, o sentimento de pertencimento. Sentimento esse, que Sig Freud, precursor da psicanálise, por exemplo, nunca experienciou.


Em termos psicofisiológicos está relacionado a uma hiperestimulação e/ou hiperativação do Default Mode Network, a “rede neural de modo padrão”. Rede essa que todos os humanos tecem ao longo da vida. Este modo de rede enraíza algumas rotas sinápticas dentro de cada um de nós após uma mescla das experiências com nossas fantasias incidindo no real, simbólico e imaginário.


A hiperestimulação por conta dos psicodélicos pode ser tão elevada se comparada às convencionais ativações que causa um estado de entropia neural, “embaralhando” as rotas de pensamentos e sentimentos já estabelecidos. O tom hedônico desta experiência é variável; Pode ser sentida como profundamente enteógena ou mesmo divina, por vezes catártica e iluminadora, mas ao mesmo tempo assustadora, perturbadora ou angustiante, aterradora e árida; também pode ser vivida como algo acolhedor, carregado de significados que dão sentido tanto à vida como à própria experiência.


Ao mesmo tempo, também, como uma possível experiência desafiadora. A completude ambivalente e contraditória dos sentimentos e emoções desmoronam como castelos de areia à vista da primeira onda marítima.


A busca e até propaganda desse estado de dissolução suscita ideias de que matar o ego seria tanto possível como desejável - além de ser moeda de troca no mundo material:


"Eu já matei meu ego no último retiro em Tulum e você?" - Luz, Grati.

Depositar em si a ideia de separação entre quem matou e quem não matou o ego, de quem teve alguma experiência com psicodélicos e quem não teve: talvez nunca tenha sido raro que indivíduos acreditem obter acesso às mais sofisticas regras do jogo da vida após uma ou algumas experiências com psicodélicos. É a nova roupagem dos jogos incorporados que mais distanciam os seres que os une, afinal é puro quem matou o ego e profano quem não tem coragem de dar esse pulo.


O oposto da dissolução pode se instaurar muito facilmente: a inflação desse ego, afinal, "o que não mata, engorda".


EXTRA! EXTRA! EXTRA! Ações do EGO estão subindo cada vez mais. Compre na baixa e venda na alta. Há expectativas elevadas para Q2 e Q3, e esta é uma informação privilegiada. Os psicodélicos me disseram, shh!
EXTRA! EXTRA! EXTRA! Ações do EGO estão subindo cada vez mais. Compre na baixa e venda na alta. Há expectativas elevadas para Q2 e Q3, e esta é uma informação privilegiada. Os psicodélicos me disseram, shh!

Ego-me se for capaz: quem é esse tal de Ego?

Não sendo exclusiva das experiências psicodélicas, há fenômenos semelhantes e que são descritos em contextos variados, como experiências de quase-morte (EQM), estados profundos de meditação, redução ou privação de estímulos sensoriais, transes induzidos por música, transes místicos e práticas espirituais de tradições - por exemplo, fana no Sufismo, satori no Zen Budismo, - onde há esse profundo conhecer-se e reconhecimento de si. Ou mesmo em rituais de iniciação Bwiti, onde iniciado simbolicamente "morre" para seu antigo eu renascer em uma nova compreensão espiritual e como um membro pleno da comunidade espiritual. Esta ocorrência "transcontextual", em locais distantes, indica que a experiência de dissolução do ego é um fantasma de nosso tempo: mata-se apenas aquilo que se dá a vida e poderia sim tatear aspectos fundamentais da construção da consciência humana e da manutenção da percepção da auto-identidade, transcendendo um mero efeito psicofarmacológico.


Já no contexto da investigação psicodélica contemporânea, frequentemente apelidada de "renascimento psicodélico" (pós hiato de pesquisas, década de 1990 em frente), a dissolução do ego emergiu como um “constructo” de interesse central e é frequentemente considerada um componente nuclear da experiência psicodélica "de pico", "mística", "psiconáutica", "enteógena" ou "terapêutica".


Essa dissolução do eu tem sido correlacionada com potenciais resultados terapêuticos anunciados como promissores em diversas condições psiquiátricas: estudos sugerem associações inversamente proporcionais entre a intensidade da dissolução do ego e a ansiedade relacionada com a morte. Melhorias e avanços no tratamento da depressão refratária, ansiedade generalizada, transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), transtorno obsessivo-compulsivo e uso abusivo de substâncias.


Ou seja, em teoria, quanto maior a entropia, maior a possibilidade de cura.


A dissolução do ego é, então, conceitualizada não como o agente terapêutico direto, mas como um mediador principal da mudança psicológica positiva, embora os mecanismos precisos subjacentes a esta relação tendem a recair sob o processo de integração após uma experiência psicodélica.


Uma dificuldade inerente a esta exploração reside na própria polissemia do termo "ego".


Utilizado abundantemente na literatura psicodélica, o termo "ego" nem sempre é empregado com precisão conceitual, por vezes confundindo as rigorosas formulações psicodinâmicas adotando noções afrouxadas, coloquiais ou mesmo errôneas de "self", "eu", "personalidade" ou "identidade".


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O "ego" da psicanálise freudiana (mediador psíquico), o "ego" junguiano (centro da consciência) e o "ego" lacaniano (construção imaginária), para não mencionar as suas acepções na psicologia cognitiva ou mesmo no discurso popular, representam epistemes fundamentalmente distintas.


A introdução e popularização do termo "morte do ego" no contexto específico das experiências psicodélicas, particularmente com LSD, é atribuída a Timothy Leary, Ralph Metzner e Richard (Baba Ram Dass) Alpert através do seu livro de 1964, The Psychedelic Experience: A Manual Based on The Tibetan Book of the Dead, como uma metáfora para a jornada psicodélica. No seu modelo, a morte e o renascimento descritos no texto tibetano espelham a experiência psicodélica. A "morte do ego" ou "perda do ego" corresponde à primeira fase ou "Bardo" (o Chikhai Bardo), representando uma morte simbólica necessária do velho self ou ego - este senso de eu - um pré-requisito para a morte e o renascimento espiritual.


Leary e Alpert, dois psicólogos de Harvard na década de 1950, definiram a perda do ego como uma:


"... transcendência completa − para além das palavras, para além do espaço-tempo, para além do self. Não há visões, nem sentido de self, nem pensamentos. Há apenas pura consciência e liberdade extática".

Richard "Ram Dass" Alpert e o chapeleiro maluco, Timothy Leary, tomam a transcendência radical e a libertação do chamado "jogo" da realidade e do self como convencionais. Há inúmeros "jogos" descritos na obra, desde os estritamente conceituais e simbólicos, jogos de realidade rotineira ou de reentrada, sociais e culturais (o jogo externo) e por último, mas não menos importantes, os jogos do ego, que desembocam na vala comum do "não-jogo".


A terminologia de Leary/Alpert exerceu influência nas descrições subsequentes dos efeitos psicodélicos por inúmeros autores, pesquisadores, usuários e entusiastas. Incluindo este que vos escreve.


Este "empréstimo" do Budismo Tibetano não está isenta de críticas, afinal, como citado, a ideia de uma dissolução do self não surge ex-nihilo, ou seja, do nada, com Leary, Alpert ou Metzner. Conceitos análogos preexistiam em diversas tradições místicas e espirituais, e na verdade há um intensa - e nada finalizada - discussão sobre a qualidade da tradução de Metzner, bem como sua prevalência no budismo tibetano em si.


O conceito de biopirataria psicodélica é má digerido entre as sociedades de entusiastas e usuários, mas se flertarmos com a ideia de que o Livro Tibetano do Mortos não é dos mortos e nem tão tibetano assim, seria a deflagrante realidade de um eterno retorno do Bardo Colonial? Mas isso fica para uma outra exploração. Por enquanto, fiquem com uma descrição de como ocidentais conseguem enfeitiçarem-se como seus próprios fetiches.


Ilustração tradicional tibetana sobre o vislumbre das Divindades Pacíficas no plano do pós-morte, segundo o Livro Tibetano dos Mortos, Bardo Thodöl.

Já, impressionantemente, no campo da psicologia e mitologia comparada, William James, o primeiro filósofo/psicólogo a ministrar aulas de psicologia nos EUA, cita a "auto-entrega" ante ao pragmatismo da vida racional, embora esbarre ainda na volição consciente de "desapegar" e, também, Joseph Campbell, em sua análise da "Jornada do Herói", descreveu uma fase de transição que ressoa com a morte do ego onde inclui atravessamentos de separação, transição e incorporação.


De igual ou tão maior relevância para uma perspectiva psicanalítica é o conceito de "morte psíquica" de Carl Gustav Jung. O ex discípulo de Freud e idealizador da psicologia profunda, caracterizou-a como uma reorganização fundamental da psique, com potencial libertador para realinhar a consciência com o "self natural" através da reconciliação de arquétipos conflitantes, um processo que ocorre pontualmente durante períodos de intenso sofrimento ou mesmo na metanóia. Embora distinto do uso de Leary/Alpert, o conceito de Jung oferece um paralelo psicodinâmico precoce à exploração psiconáutica, focando na transformação psíquica profunda.



Ego post-mortem

Cabou o ego, gente, agora todo mundo é um só.
Cabou o ego, gente, agora todo mundo é um só.

Após, da mais alta masmorra dos castelos de cartas, atirarem o ego, o que sobra? Como o ego sai quando é afogado em lama traumática e pegajosa como piche? Após a união com o todo, o retorno à pachamama, depois da cura da criança interna, o que vem?


A própria ideia - de matar o ego -, à luz de novas perspectivas mostra-se falha. Atravessa o chamado Samsara, este ciclo ininterrupto composto por nascimento, morte e renascimento, ou, criação, destruição e transformação apenas para retornar ao seu centro. Uma confluência de transformações que inflam este constructo criado chamado de ego.


“Ok, sou melhor que as outras pessoas. Mas e agora?”

Mas então se a morte do ego é algo palpável e replicável, nada impede que consigamos produzi-la. A criação de um produto é determinada por inúmeros fatores econômicos que por obvio envolvem oferta e demanda, porém é também determinada por esse vão fálico indicando quem está do outro lado do balcão como supostamente detentor e que trocaria esse algo por algum objeto simbólico ou material. Dá pra vender morte do ego por dinheiro. O resultado de tanto ego morto-vivo é um grande balcão de negócios usando a dissolução do ego como ingresso de entrada, parcelado em doze sem juros.


A salada de frutas estratégica para conseguirem vender e chegarem a um público maior é de colocar mitologia egípcia, arcanjos, cabala new age, xamanismo, física quântica e autoconhecimento em um único caldeirão.


Quem compra é tão vitima quanto quem vende? Quem vende está apenas expandindo a palavras dos psicodélicos? Seria o vendedor um grande entusiasta, pesquisador, connoisseur das substâncias de poder? E isso só é possível por conta também, dessa ilusão de possuir ou faltar do ego.

Esse print é tão perigoso que não consigo nem fazer alguma piada. O nível de marketing é dos mais elevados. Se você acredita nessa mentira, sugiro voltar algumas casas no jogo da vida. Você que acredita no que está no print - e me dói escrever isso - precisa de supervisão de algum adulto experiente para tomar algumas decisões da vida. Cuidado e boa sorte.
Esse print é tão perigoso que não consigo nem fazer alguma piada. O nível de marketing é dos mais elevados. Se você acredita nessa mentira, sugiro voltar algumas casas no jogo da vida. Você que acredita no que está no print - e me dói escrever isso - precisa de supervisão de algum adulto experiente para tomar algumas decisões da vida. Cuidado e boa sorte.

Quando um corpo chega ao necrotério, temos alguns procedimentos - ritos, por assim dizer - para a preparação desse cadáver. Desde a recepção, avaliação, higienização até às massagens aliviadoras do rigor mortis. Temos, nós ocidentais, nossos ritos velados. Quando o ego está esticado na mesa fria de preparação, como será que se faz para dar adeus?


Aqui o grande jogo é dar crédito às narrativas que de há de fato esse eu separado dos outros, para então matá-lo.


Essa fênix que renasce das cinzas trouxe consigo práticas inclusivas, transdisciplinares? Conseguiu após enterrar o ego, renascer um ser diferente ou reencarnou nas mesmas ansiedades, controles, motivações?


Depois de tanto ego morto, como não há mais organização coletiva? Onde reside o "todo" nesse "um"? Como que a separação se torna regra após a morte do ego, entre os que já usaram psicodélicos e os que não?


A transformação não é apenas um passo para a aceitação do que está posto. Há uma passagem através do conflito com o Outro que nasce e morre com ele: pois se o inferno são os outros, o paraíso também é.


Mata-se o ego apenas quem acredita que, de alguma forma, o possui.

2 comentários

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24 de mai.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Consagrei a medicina do sapo com o maestro galindo e foi das experiencias mais curativas da minha vida ... nao sabia disso tudo , gostei dos videos

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Helena
11 de mai.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Muito boa a leitura. Como são perigosas essas promessas de comercialização espiritual da "libertação" e "morte do ego". Imagina se fosse tudo tão "fácil". Tudo parcela no cartão essa gente indigesta!

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