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Foto do escritorFelipe Nadai

DO XAMÃ AO DIVÃ

Psicoterapia Assistida com Psicodélicos




A doença foi bem a razão


 De todo o impulso de criar;


 Criando eu pude me curar,


 Criando eu me tornei são. *



Psicodélicos tiveram sua chance há mais de sessenta anos e após serem associados à inúmeros grupos, seu tempo na montanha-russa da ciência enfrentou solavancos que deixaram seus trilhos de pesquisa inativos por quase meio século. Bem documentado que em 1943, Albert Hoffman, no laboratório da Sandoz na Basiléia, Suíça, resintetizou pela segunda vez o LSD-25, abrindo a maior porta dos psicodélicos para o mundo ocidental e quinze anos depois a oportunidade de aprofundar cientificamente seus conhecimentos se fechou¹. Psicodélicos, durante a década de sessenta foram ligados à contracultura, à marginalização, ao abuso de entorpecentes, desvio de conduta e principalmente à subversão. Entretanto, os últimos anos têm sido promissores a estes fármacos classificados como psicodélicos quanto ao que a ciência médica verifica como eficaz e seguro para administração em terapias específicas.


Esse é o ponto onde estamos: drogas do passado emergindo durante essa crise na psiquiatria², onde fármacos mais modernos são escassos e novas formas de tratamento são necessárias³. E quais drogas são essas? As promissoras são: LSD (dietilamida do ácido lisérgico, n. 25), DMT (dimetiltriptamina, encontrado no composto da ayahuasca), a psilocibina (encontrada em cogumelos psilocybe cubensis, psicilocybe mexicana e psilocybe tempanenses entre outros da categoria) e principalmente o MDMA (metilenodioximetanfetamina), substância que tem tido os resultados mais promissores e será o foco desse ensaio.


Devemos traçar uma linha aqui: MDMA não é necessariamente ecstasy e ecstasy não é necessariamente MDMA. Nas ruas a substância MDMA foi associada ao nome popular ecstasy, à “droga do amor”, entretanto mais de 50% dos comprimidos vendidos com o nome de ecstasy não contém MDMA, apresentando inúmeros análogos e substâncias similares que simulam o efeito do MDMA.



II — PSICODÉLICOS E SOCIEDADE


Muitas dessas substâncias (psilocibina, mescalina — encontrada no cacto peiote ou São Pedro) são conhecidas de nossa espécie há milênios e outras só foram sintetizadas no último século, porém essa classificação, de substâncias psicodélicas as aloca em uma categoria singular de efeitos colaterais: não há associação à risco de parada cardíaca por ligação às fibras atriais, baixa taxa de risco de vício, sendo seus usos terapêuticos e recreativos seguros e os relatos subjetivos são de um estado não-ordinário de consciência com visões vívidas e intensas mesmo de olhos fechados, com profunda alteração na dinâmica do pensamento, emergindo sentimentos de unidade, integração e em muitos casos, de cura,.





Os aspectos sociopolíticos são relevantes e parte crucial da história de como tratamos essas substâncias e entrelaçam-se em jogos de poder, interesses econômicos, idealização e demonização, portanto não foram o foco desse ensaio. Mas não devemos esquecer que é justamente a proibição e a não regulação dessas substâncias que nos colocou num patamar de ignorância quanto à farmacocinética, dinâmica e efeitos subjetivos apresentados pelo uso terapêutico. O modelo adotado no Brasil de abstinência total é impraticável em qualquer sociedade, gerando apenas uma balança comercial favorável para o mercado negro e todos seus malefícios que incluem adulteração e riscos imprevisíveis.


A utilização de substâncias classificadas como psicodélicas não é exclusiva do século XX (psukhḗ + dêlos, dêlom; alma/mente + manifestação/criação/iluminação), afinal, comunidades xamânicas e sociedades primitivas já usam de plantas, raízes, fungos, cascas de árvore, cactos, entre uma vasta gama de substâncias como formas ritualísticas há pelo menos um milênio¹⁰, como pode ser visto na figura abaixo, uma sacola de couro com compostos ainda psicoativos. Ameríndios da Bacia da Prata, que inclui o Brasil, por exemplo, utilizam religiosamente o composto, orgânico chamado de ayahuasca, (cipó do espírito) bebida fermentada com a mistura de várias plantas como jagube, chacrona, chagropanga e jurema preta¹¹, já nos Andes é utilizado o cacto San Pedro — alusão ao santo católico que detém as chaves dos céus¹². Xamãs norte-americanos utilizavam cogumelos (Psilocybe mexicana, Amanita muscaria) como enteógenos — neologismo que caracteriza substância que induz ao estado xamânico. Todas essas substâncias são utilizadas com um propósito: alteração da consciência, mudança de padrões de pensamentos, conexão interior, cura¹³, senso de coletividade¹⁴, entre inúmeras outras.




Bolsa de couro de focino de raposa contendo psicodélicos e substâncias variadas. Datado de 1000 dC
Bolsa de couro (A), pastilhas para rapé de madeira entalhadas e decoradas com figuras antropomórficas (B e C), tepi (tubo de aplicação de rapé) antropomórfico intrincado com duas tranças de cabelo humano (D), bolsa de pele de animal construída com três focinhos de raposa (L. culpaeus) costuradas (E), duas espátulas ósseas camelídeos (L. glama) (F), dois pequenos pedaços de material vegetal seco presos a fios de lã e fibras (G) e uma faixa de tecido têxtil policromada (H) . Os artefatos (E e G) foram testados usando a análise LC-MS / MS.


O desejo de entender as interações das substâncias psicodélicas no rganismo e sociedade entra concomitantemente com o estado em que temos vivido: mesmo que tais fármacos tenham sido proibidos no passado, estudos recentes têm comprovado sua eficácia e segurança quanto ao tratamento de transtornos específicos como o TEPT (Transtorno de Estresse Pós-Traumático) com assistência de MDMA e psicoterapia assistida (PAP), depressão com psilocibina; ansiedade em pacientes terminais com LSD. O estudo com MDMA foi o foco desse levantamento realizado.


E esse é um campo inexplorado pela psicologia. Ao entrar nesse tema percebi-me numa área amórfica e controversa, onde havia sim literatura suficiente para inúmeras pesquisas individuais, porém não eram efetivamente mostradas. Atualmente, na PUCPR, conheço outra estudante que estuda terapias psicodélicas — com foco em LSD — , onde houve resistência por parte da orientação. Aliás, pouco se sabe na academia sobre o uso de psicodélicos com psicoterapia. Ainda são classificados como “drogas ilegais” e no imaginário de colegas, professores, médicos e psicólogos, seu valor terapêutico seria nulo.


Contudo no século XXI, comunidades xamânicas e suas substâncias encontram com tecnologia de ressonância magnética funcional¹⁵ podendo nos explicar a farmacocinética e farmacodinâmica no indivíduo sob efeito da substância. O LSD e a psilocibina dependem exclusivamente da ligação com o neurotransmissor 5-HT2A, O MDMA inibe a recaptação de serotonina além de reabrir por um determinado tempo o centro de recompensa, que leva a uma “autorregulação de dependência de oxitocina na depressão maior”¹⁶.


Embora o título contenha divã no nome, não podemos incorrer ao erro de relacionar à psicanálise. O jogo de palavras veio decorrente de uma aula no curso de Medicina Psicodélica, ministrado pelo neurocientista Eduardo Schenberg, pesquisador principal do estudo sobre MDMA com psicoterapia assistida aqui no Brasil. Se há alguma abordagem necessária para a praticar a terapia psicodélica é realizar o curso de formação em Terapia Psicodélica, ministrado pela MAPS (Multidisciplinary Assossiation for Psychedelic Studies), uma organização sem fins lucrativos situada em Seattle.


III — O TRANSTORNO DE ESTRESSE PÓS-TRAUMÁTICO (TEPT) E O MDMA


Tradicionalmente, o TEPT é organizado em três subgrupos, estando relacionado: a) reexperiência traumática; b) à esquiva e ao distanciamento emocionais; e c) à hiperexcitabilidade psíquica¹⁷.


A reexperiência traumática é caracterizada por uma lembrança constante do trauma, uma ruminação psíquica que leva à inatividade motora. Essa reexperiência é vivida a partir de uma lembrança fragmentada do acontecimento — como um odor, uma imagem ou um som –, ativada por um gatilho externo. Este pode variar desde o mais simples até o mais sofisticado (como um trovão ou perfume-, e pode até mesmo envolver a citação direta do trauma, o que leva o indivíduo a reviver todos os aspectos fisiológicos experienciados durante o trauma¹⁸.



Oficial do exército americano durante terapia psicodélica. Linaeja White.
Linaeja White, especialista em cuidados de saúde do Batalhão de Tropas Especiais, Brigada de Apoio Resoluto da 3ª Divisão de Infantaria, torce o rosto em 2 de abril de 2018, durante uma aula de Mindfulness Monday no Bagram Airfield, Afeganistão. Verificou-se que terapias como a meditação transcendental são eficazes no tratamento do TEPT. (Sargento Elizabeth White / Exército dos EUA)

A esquiva e distanciamento emocional são sintomas relativos à repetição traumática causada pelos mais ínfimos estímulos, o que torna esta segunda modalidade do TEPT bastante próxima à terceira . O indivíduo é levado a evitar uma ampla gama de situações — desde sentimentos, pessoas, lugares e ações, até filmes, esquinas e perfumes –, tudo afim de não se deparar com esses estímulos no mundo real. Tudo isso traz uma hiperexcitabilidade psíquica muito violenta, na qual o nível de tensão do SNC (sistema nervoso central) e do SNA (sistema nervoso autônomo) vem acompanhado de uma gama variada de sintomas, tais como taquicardia, parestesias, sudorese, tonturas e extremidades frias, em uma constante hipervigilância.


Apesar das referidas lacunas, o Brasil está no foco da Medicina Psicodélica. Cite-se, nesse sentido, o financiamento coletivo da ONG Plantando Consciência, que, em parceria com a MAPS, sedia a replicação de um estudo Fase 2 já realizado nos Estados Unidos. O tratamento proposto com psicodélicos é para específico para o TEPT. Somente nos EUA, há inúmeros pacientes que, em decorrência de guerras, revivem seu trauma a partir de gatilhos externos ou apenas pela memória do acontecimento. O TEPT envolve um déficit na extinção do condicionamento de medo, impossibilitando o paciente de elaborar novos sentimentos acerca de suas memórias¹⁹. O caso do Brasil apresenta-se como peculiar: embora não tenhamos guerras declaradas, o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC, no acrônimo original) analisa que o Brasil, em 2014, teve 53 mil homicídios. Isso mostra uma figura muito triste da realidade brasileira, mantenedora de traumas diários e recorrentes, ainda que sem conflitos explicitamente bélicos²⁰.


Recuando-se às primeiras pesquisas em Fase 1 (com a primeira administração da substância a um ser humano saudável, sem diagnóstico da doença), realizadas na Espanha nos anos 2000, identificam-se algumas incongruências metodológicas, com aplicação de substância errada. Foram concluídas outras pesquisas em Fase 2 (em indivíduos que possuem a doença ou em condição para verificar eficácia): uma em 2004, com 19 participantes, e outra em 2007, com o acompanhamento entre 17–74 meses após a última ingestão da substância durante terapia²¹.


Esse estudo de Fase 2 foi replicado no Brasil e mantém os procedimentos estabelecidos pela MAPS atribuídos a esse tipo de terapia, com base em pesquisas preliminares em que são previstos parâmetros fundamentais: a quantidade de substância a ser ministrada a um adulto saudável e já diagnosticado com TEPT; quais profissionais estarão presentes; como serão realizados a administração da substância, bem como os procedimentos terapêuticos, pelos psicólogos.


Em suma, todo esse embasamento teórico e prático adotado no exterior ampara os procedimentos adotados na pesquisa realizada no Brasil.


VI — A PESQUISA DE MDMA NO BRASIL

Tratando-se de uma pesquisa, os procedimentos são rigorosos: a triagem requer que o candidato tenha sido diagnosticado com TEPT, já tenha realizado procedimento terapêutico ineficaz com outros fármacos, não tenha histórico de doença mental na família, surto psicótico ou diagnóstico de esquizofrenia. Tudo isso é verificado no encontro preliminar com o psiquiatra responsável, mediante avaliação com testes psicológicos, em uma tentativa de mensurar, dentro de uma escala, para além de entrevistas sobre o histórico pessoal do candidato. Ao atingir os critérios estabelecidos, os indivíduos selecionados passam por exames laboratoriais, incluindo testes hepáticos e cardiovasculares. No Brasil, o número de candidatos que atingiram os critérios e realizaram a pesquisa foi de 6 (seis) pessoas.


Na série de testes brasileiros, os psicólogos responsáveis aplicam testes iniciais em cada sessão. São avaliadas ideação suicida e escala de bem-estar. Também se verificam sintomas somáticos oriundos do trauma — gatilhos internos ou externos como memórias, sons e/ou luzes. Previamente tiques e movimentos repetitivos são observados e avaliados e novamente conforme cada sessão com a substância ministrada.


Tendo sido qualificado, cada candidato tem três sessões psicoterapeutas preparatórias, conduzidas por um homem e uma mulher, com duração de no mínimo 1h00m e máxima de uma 1h30m, uma vez por semana. Nessas sessões, os psicoterapeutas estabelecem vínculo com o paciente e explicam os passos das sessões. Essas sessões são chamadas de “preparatórias” por isto: iniciam o paciente dentro da pesquisa, explicando os efeitos esperados.


A quarta sessão ocorre com a administração da substância, vinda dos EUA e com pureza de 99,9%. Há inúmeras particularidades nessa fase. O paciente chega ao local às 9:30 da manhã, com a primeira administração sendo às 11h e durando até às 17 ou 18h da tarde. Após o término da sessão, o paciente dorme no local, e um profissional da saúde permanece em uma sala ao lado, sem interferir e apresentando-se como apoio caso necessário. Há, ainda, uma restrição alimentar para o dia. Recomenda-se que a pessoa vá em jejum de alimentos sólidos e que, durante a sessão, se hidrate com água, água de coco ou suco. Essa sessão dura de 6 a 8 horas, com 1h30m de preliminares para a ingestão da substância. O quarto onde ocorre a sessão é aparelhado com sistema de som, cama, sofá, fones de ouvido e venda de olhos, para diminuir a luminosidade. Enquanto sob efeito, recomenda-se ao paciente que mantenha calma, respiração leve e controlada e tente se manter imóvel, de olhos fechados. Conversas são, contudo, incentivadas, sempre que o paciente se sentir à vontade²²,²³.


Marcela Ot’alora e Bruce Poulter, psicoterapia assistida pelo MDMA para TEPT.
Os terapeutas Marcela Ot’alora e Bruce Poulter são treinados para realizar psicoterapia assistida pelo MDMA. Dois terapeutas necessariamente, masculino e feminino. Fones de ouvido e vendas são opcionais. Nesta reconstituição, eles demonstram como ajudam a orientar e vigiar um paciente que está revisitando memórias traumáticas sob a influência do MDMA. Nos ensaios de fase 2, 107 participantes com TEPT crônico resistente ao tratamento foram recrutados para receber terapia, incluindo várias sessões ao longo de um mês. Dois meses após o tratamento, 56% dos pacientes não apresentaram mais sintomas que se qualificaram como TEPT. Nos 12 meses de acompanhamento, 68% “não tinham mais TEPT”. **

É necessário que um médico clínico esteja presente. De início, faz-se um teste toxicológico, para averiguar eventual interação de substâncias. Às mulheres é requerido um teste de gravidez. Caso haja substâncias que podem causar interação química ou o teste seja positivo, a sessão é adiada; e, no caso de positivo para gravidez, a sessão é interrompida. Aferem-se a pressão e a temperatura três vezes a cada meia hora; e, na terceira vez, administra-se o MDMA.


A substância é administrada exclusivamente pelo médico clínico. Testes clínicos preliminares em outras pesquisas Fase 1 concluíram que a dose recomendada para um adulto saudável é de 75mg, com duração de aproximadamente três horas. A partir de uma hora e meia a duas horas, a substância atinge um plateau (pico de interação) e diminui o efeito²⁴. Após 1h30m da ingestão, é oferecido um booster, justamente para manter o plateau por mais tempo. Esse booster é de metade da dose inicial, ou seja, 37,5mg de MDMA. O paciente tem autonomia durante todo o processo.

Intercaladas às sessões com a administração da substância, há sessões psicoterapêuticas integrativas²⁵. Na manhã seguinte à primeira sessão com a substância administrada, os psicólogos e o médico retornam ao local por volta das 8h30m da manhã, para fazer a sessão chamada de integrativa. Nesta se avalia o que ocorreu no dia anterior: os insights, sentimentos, percepções e, sobretudo, o que o paciente extraiu da experiência.


A segunda sessão com a administração MDMA, sexta no total, mantém o protocolo inicial de preliminares, com uma alteração: é oferecida ao paciente a escolha de permanecer na mesma dosagem ou ingerir uma dosagem maior, de 125mg. A partir de uma avaliação dos psicólogos e do médico clínico, em conjunto com o paciente, a sessão se inicia e mantém os procedimentos da primeira sessão, oferecido um booster a cada 1h30m; porém, se o paciente opta por 125mg de dose inicial, o booster é de 67,5mg, também oferecido a cada 1h30m. Na terceira sessão não se aumenta a dose, mas, ainda assim, é oferecida ao paciente a escolha de ou permanecer com dosagem escolhida na segunda sessão (caso tenha sido 125mg) ou diminuir para a dose inicial (75mg). Após cada uma das sessões com MDMA, o paciente participa de sessões de psicoterapia integrativa, como dita o protocolo.


Os terapeutas avaliam eventual excesso da dose ou a possibilidade de aumentar a dosagem em cada sessão integrativa, sempre em conjunto com o paciente, que relata suas experiências da sessão anterior durante as preliminares da sessão seguinte.

Até este momento, computam-se as seguintes sessões: 3 (três) sessões de psicoterapia, para elucidar e preparar o candidato; 3 (três) sessões com uso de substância; estas são intercaladas por três sessões integrativas; e, por último, nas 3 (três) semanas seguintes, o paciente tem 1 (uma) sessão por semana com os psicoterapeutas para reavaliação, integração de sentimentos e percepções a partir do que o indivíduo experienciou. Nessas sessões, há um feedback por parte dos psicólogos. O total de sessões de todo o tratamento proposto é, portanto, de 15 (quinze) encontros.


Muitos efeitos são esperados durante as sessões, mas há inúmeros efeitos adversos que necessitam de psicólogos preparados para esses estados incomuns de consciência²⁶, sempre se mantendo um protocolo claro: acolhimento da expressão do paciente, autonomia para movimentos e ideias incoerentes, apresentação de contexto seguro, sem críticas e sem julgamentos, tudo, sempre, com acolhimento e com respeito, até a pessoa retornar a uma coerência ordinária²⁷. Abordagens menos diretivas, que procedem com pouca ou nenhuma intervenção no paciente são mais bem recebidas, entretanto qualquer profissional de linhas comportamentais ou cognitivo comportamentais são bem-vindos contanto que tenham experiência com práticas não-diretivas de psicoterapia.


V — CONSIDERAÇÕES FINAIS

A PAP (Psicoterapia Assistida com Psicodélicos) inova ao ministrar a medicação específica para um transtorno também específico assistida completamente por psicólogos, procedimento incomum nos tratamentos com fármacos. Outra inovação é o período de tempo: 15 (quinze), sessões em seis a oito semanas, com apenas 3 (três) sessões com MDMA, tudo contra anos de alterações neuroquímicas diárias em tratamentos com fármacos convencionais²⁸. Devido à maneira em que os psicodélicos agem em nosso organismo, o foco o tratamento não seria de corrigir um problema, mas, sim, de habilitar a capacidade de modificação cerebral temporária²⁹ com uso de substância em conjunto com psicoterapia assistida.


Assim, a Psicoterapia Assistida com Psicodélicos não seria uma “mera neurofarmacologia”³⁰ como diria o neurocientista Eduardo Schenberg.

O campo da Medicina Psicodélica parece ser um casamento entre as neurociências e a psicoterapia, com procedimentos e manuais específicos para o tratamento. Até então, a eficácia do tratamento é de 74%, algo considerado pelo FDA, órgão regulador de alimentos e fármacos nos EUA, como vanguardista, tendo em vista as poucas inovações no campo psiquiátrico em fármacos. O mesmo órgão classificou o potencial disruptivo³¹ dos psicodélicos e seus efeitos, que diminuem a comunicação entre regiões cerebrais em que é mantida a DMN, ou “Default Mode Network”, rede de modo padrão, em tradução livre — ou a associada por alguns neurocientistas como sendo a reguladora da noção de realidade, consciência, planejamento e controle inibitório³², ou seja, o objetivo dessa psicoterapia é aliar uma modificação momentânea para uma alteração tanto comportamental como de consciência permanente.


Creio que haja inúmeras variáveis a serem consideradas, entre as quais o maior obstáculo talvez seja a preparação do psicoterapeuta. Caso se atinja o resultado esperado de dissolução momentânea do que consideramos como “ego”, cabe indagar: como garantir uma não diretividade? Em outras palavras: como garantir que não haja indução, tal qual recorrentemente ocorre em terapias com hipnose? Ou, ainda: como garantir que não ocorram estados incomuns de inconsciência, por indução do terapeuta, durante essa possível “reconstrução/reconstituição” do paciente? O estudo clínico, por estar em Fase 2 confere segurança quanto à substância, mas como será em caso de liberação da própria substância? O MDMA ainda é uma substância ilegal para fins que não sejam de pesquisa. Caso um dia a substância seja descriminalizada e regulada, permanece a pergunta: o que garante que o MDMA não caia em uso regular e irresponsável, como outros psicotrópicos regulados? Quem terá o acesso ao fármaco? Clínicos gerais? Somente psiquiatras?


A integração do Brasil com essa forma de Psicoterapia Assistida com Psicodélicos atinge outra barreira: como será uma implementação no Sistema Único de Saúde (SUS)? Teríamos leitos o suficiente para manter essa equipe transdisciplinar? Lembramos que necessitamos de pelos menos dois psicólogos, um psiquiatra, um estagiário da área da saúde todos formados com os procedimentos da terapia psicodélica, durante pelo menos 24h e durante as sessões com substância.


Outro questionamento: o papel do psicólogo será de fato integrado, caso haja uma regulamentação da substância? Sabemos que os fármacos atuais são todos considerados para uso em conjunto com psicoterapia, mas raramente isso ocorre.

Afinal, como um psicólogo atenderia uma pessoa sob efeito de substâncias?


Há claramente uma intenção pessoal no assunto: uma cultura que foi esquecida tanto pela colonização quanto pela guerra às drogas, mas que entra em pauta na sociedade justamente por um de seus maiores pilares de resistência à inovação, ou seja, a ciência.


Voltar ao passado, reinventar e redescobrir tem sido tanto uma sina quanto uma salvação dos seres humanos. Dessa vez, estamos perto de redescobrirmos substâncias utilizadas por civilizações muito anteriores à nossa, com o mesmo propósito de cura e reintegração³³,³⁴.

*Heine, em suas “Canções da Criação” (1844), citado por Freud em 1914 na obra Introdução ao Narcisismo. A voz que fala é a de Deus.

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Guest
há uma hora
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Muito bom!

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