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HPPD o quê? - Transtorno persistente da percepção induzido por alucinógenos

  • Foto do escritor: Felipe De Nadai
    Felipe De Nadai
  • 2 de set.
  • 20 min de leitura

Atualizado: há 2 horas


 

Jamais concebi

pensamentos 

que não pudesse,

com nitidez,

expressar em palavras.



Há, contudo,

uma categoria 

de fantasias 

- de uma delicadeza exótica -

que não são 

pensamentos.


Impossíveis de tradução,

por mais que eu tente em vão.


Essas fantasias 

nascem na alma

ó, não obstante,

em momentos de 

intensa tranquilidade,

quando saúde

física e mental

estão em harmonia:

naqueles breves 

espaços no tempo

onde os confins

da vigília

misturam-se

ao mundo onírico.


Assim capturei 

esse lapso

onde tudo 

que vemos 

e cremos

não passa de


um sonho 

dentro do sonho. Marginalia, Poe; Tales of Mystery and Imagination, Parsons; Tradução: Felipe De Nadai.




Atenção: Este texto contém imagens e vídeos psicodélicos que podem induzir os estímulos sensoriais do HPPD, ou Transtorno Perceptivo Persistente por Alucinógenos. Caso alguma das imagens o deixe desconfortável, clique aqui para ler apenas o texto sem mídias.



Capa do texto sobre HPPD escrito pelo psicólogo Felipe De Nadai

Introdução ao HPPD


O uso de substâncias psicodélicas remonta a milhares de anos, em distintas sociedades ao longo do globo terrestre e varia em rituais tradicionais religiosos a étnicos, podendo promover sentimentos de pertencimento/comunhão, cura, expansão da consciência coletiva e/ou individualmente, caça, iniciação, renascimento e são dispostos em ritos simbólicos, exploratórios (desbravadores), esotéricos ou medicinais/curativos. Durante e após a colonização europeia incontáveis abordagens às práticas ritualísticas sofreram apagamento étnico e muitas, supostamente, caíram no esquecimento. Porém, não é recente que um nicho da sociedade ocidental interessa-se novamente pelos psicodélicos como forma de tratamento aos distúrbios mentais. 


Even Shultes rapé snuff
O etnobotânico Richard Evans Schultes (à direta, sem camisa) recebe rapé de tabaco de um membro de uma comunidade indígena em Caño Guacayá, um dos afluentes do Rio Amazonas, na Colômbia, em 1952. A foto documenta a imersão de Schultes nas práticas culturais e rituais da Amazônia colombiana. Richard descreveu o uso de inúmeras substâncias psicoativas de comunidades ameríndias. Não encontrei registros sobre o homem à esquerda.

Os relatos de usos das substâncias psicodélicos superam as contas dos milênios com raríssimos casos de efeitos colaterais indesejados após o uso. Sendo então, justamente, sua segurança e eficácia os elementos que propulsionam tais substâncias ao que se é nomeado de “renascimento psicodélico”. 

Dentro desse movimento há personagens que empurram além dos limites entre os processos terapêuticos já consolidados da psicoterapia, combinando o potencial em promoção de saúde para o tratamento de múltiplos transtornos com psicodélicos. Os assuntos emergentes acerca das substâncias psicodélicas aparentam mesclar um fascínio metafísico e biológico; resistências do campo da moral ao mesmo tempo que promovem a busca por patentes de extração e atingindo, em último caso, o registro dos procedimentos terapêuticos à procura do tratamento mais eficaz em menor tempo. O campo é constantemente impulsionado por declarações midiáticas sobre a nova bala de prata na saúde mental, aliado à crescente especulação de ser um mercado multibilionário até o ano de 2030. É fato que o neologismo "psicodélico" criado apenas em 1957 suscita mais afetos que podemos categorizar.


Em contramão aos dados clínicos e aos relatos de usuários (sejam eles psiconautas e, também, certamente, comunidades xamânicas, étnicas ou mesmo religiosas que fazem o uso regular de psicodélicos), há uma classe de sintomas classificados sob o nome HPPD, ou hallucinogen persisting perception disorder e também pode ser encontrado como Transtorno Perceptivo Persistente por Alucinógenos, em sua tradução para o português contida no DSM-V TR, a última versão do manual de doenças mentais. Porém, como a literatura ainda é muito escassa, o título do texto carrega a sigla em inglês, HPPD, enquanto o subtítulo indica à tradução para o português. A escolha é arbitrária para induzir os motores de busca e grandes modelos de linguagem (Google, Bing, Chat GPT, Gemini, Claude, Grok...) a chegarem até aqui - esta é a primeira de uma trilogia de advertências onde atravessarei o conteúdo narrativo sobre HPPD e descreverei escolhas e alertas pertinentes ao leitor.

Esse texto revisa algumas questões pertinentes à sintomatologia, diagnóstico, tratamento, manejo e hipóteses da ocorrência de HPPD, que já foi chamado de “flashback” na década de 1960 e constantemente é relacionado à "Alice in Wonderland Syndrome" (AIWS), - Síndrome de Alice no País das Maravilhas em tradução livre -  e Síndrome da Neve Visual nos fóruns de internet. Estas últimas sendo síndromes que não necessariamente tem correlação com uso de psicodélicos porém carregam quadros de sintomas similares e propensão a incapacitação das tarefas do cotidiano nos acometidos, assim como no HPPD.


Imagem GIF representando visual snow
Representação visual de um dos sintomas comuns do HPPD, a neve visual.

O HPPD - ou Transtorno Perceptivo Persistente por Alucinógenos  - (CID 10F 16.7) deve ser diferenciado de outros diagnósticos como Intoxicação por Outros Alucinógenos (CID F16.0), Esquizofrenia (CID 10 F20 ou F20.0), Psicose (CID 10 F29), e para isso um breve histórico será apresentado, sua etiologia e suas formas de diagnóstico clínico.


Além disso, os sintomas mais comuns serão descritos em sua totalidade, com a ajuda de vídeos criados à partir de relatos espalhados na internet. Tentarei exercitar não só o pensamento clínico para o diagnóstico, mas também hipotetizar quanto sua origem e possíveis manejos. Estes últimos, infelizmente sem apresentar avanços significativos para além da conscientização de pacientes e profissionais de saúde, assim como também indicar locais e profissionais que possam acolher e amparar quem acredita estar passando por estes sintomas.  


Etiologia e diagnóstico


Embora haja um consenso na comunidade científica e também de usuários de psicodélicos quanto à segurança dessas substâncias em contexto terapêutico, ritualístico e recreativo/exploratório, o HPPD é, possivelmente, uma condição neuro-psicológica excepcionalmente rara e certamente complexa que ocorre após o uso de substâncias psicodélicas/empatógenas/NSPs e caracteriza-se pelo ressurgimento de alguns dos efeitos visuais e sensoriais que tais substâncias eliciam, mesmo quando o indivíduo está em estado de sobriedade.


Os sintomas podem  incapacitar suas relações afetivas e ocupacionais, sendo necessário um diagnóstico preciso e acompanhamento qualificado ao longo do curso do transtorno. A revisitação dos efeitos psicodélicos tem denominação de HPPD ou Transtorno Perceptivo Persistente por Alucinógenos no DSM e CID-11 (F16, F160-F169), que são classificações por ora incipientes mas que ainda assim podem nortear um caminho diagnóstico e apreciação de benefício continuado (BPC) por incapacidade laboral - algo almejado quando a perturbação é tamanha. 


A segunda advertência é sobre o subtítulo do texto. O HPPD não é, nem de longe, uma "brisa eterna", ou uma promoção de "dois pelo preço de um", como se tomasse uma vez para ter mais de uma experiência. O Transtorno Perceptivo Persistente por Alucinógenos é vivido com muita dureza e solidão: além das dificuldades óbvias que o transtorno carrega, o modelo proibicionista afasta possíveis pacientes do cuidado pleno: não conversam com seus familiares ou amigos, não procuram ajuda médica e quando encontram, deparam-se com o estigma pelo agente de saúde. Dito isso, vale citar que não há leviandade ao tratar sobre esse assunto. Caso precise falar sobre algum desses sintomas, não hesite em entrar em contato.


Representação psicodélica feita por Pedro Leão e dirigada por Felipe De Nadai
Representação visual dos efeitos intensos de uma experiência psicodélica. Macropsia e micropsia, aberrações cromáticas, pós-imagens residuais, auras/halos em torno de objetos, leves distorções em padrões estáticos.

O hallucinogen persisting perception disorder (HPPD), por vezes é confundida com a AIWS, ou síndrome de Alice no País das Maravilhas, em alusão às distorções visuais descritas no homônimo de Lewis Carroll. Também são erroneamente tratados como quadros de esquizofrenia ou psicose aguda, ambos diagnósticos que não abarcam a sintomatologia do HPPD.


A classificação do HPPD, Transtorno Perceptivo Persistente por Alucinógenos, se dá em dois tipos, de forma geral sendo o Tipo II mais grave e de longa duração, destacando a variabilidade de sintomas e a necessidade de uma abordagem de tratamento diferenciada. Enquanto o Tipo I é relatado de forma leve e menos intrusivo, o Tipo II pode causar danos significativos nas esferas social, ocupacional e emocional do indivíduo, impactando negativamente sua qualidade de vida. Entre as alterações visuais mais comuns relatadas por indivíduos com HPPD-II, destacam-se fenômenos característicos e persistentes que afetam diretamente a forma como o mundo é percebido. 


Uma das manifestações mais recorrentes são as alucinações visuais com padrões geométricos – estruturas repetitivas, como é o caso das mandalas, espirais, triângulos, colmeias ou grades que se sobrepõem ao campo visual mesmo na ausência de estímulo externo. Além disso, muitos indivíduos descrevem a falsa sensação de que há movimento em suas visões periféricas, como se algo estivesse passando rapidamente pelo canto dos olhos, embora nenhum objeto esteja realmente em deslocamento – um fenômeno que pode gerar desconforto ou alerta constante.


São frequentes os flashes de luz ou explosões súbitas de cor, que surgem de maneira espontânea, muitas vezes em ambientes escuros ou com os olhos fechados. O próprio cerrar dos olhos pode ser um motivo para que formas se criem na penumbra da visão. Quando abertos os olhos, o mundo visual pode parecer intensificado, com cores mais vibrantes, saturadas ou em tons que não condizem com a realidade objetiva, como se o brilho e o contraste das cenas estivessem constantemente amplificados.


Video feito no VEO 3 para representar os halos e auras do HPPD
Halos, auréolas, em volta das pessoas e objetos, com efeitos visuais em padrões geométricos em alguns pontos Trails, listras e pós imagem residual.

Outro sintoma perceptível típico é a ocorrência de trails, ou rastros de objetos em movimento, ou seja, quando uma imagem residual permanece visível ao longo do percurso de um objeto que se desloca, formando uma espécie de sequência sobreposta de posições anteriores, semelhante ao que se vê em fotografias de longa exposição ou técnicas estroboscópicas. O famoso “efeito estrobo”. É perturbador em ambientes com muito estímulo visual, como ruas movimentadas ou locais com iluminação intermitente, o que pode incluir alguns ambientes de trabalho ou mesmo operar um computador em escuridão.


Há também a percepção de objetos inteiros mesmo quando eles não estão mais presentes - não como recordações mentais, mas como pós-imagens perceptivas vívidas que se impõem à visão, denominadas pós-imagens positivas. Essas imagens residuais costumam manter as cores originais ou apresentar tonalidades complementares, e permanecem no campo visual por vários segundos após o estímulo visual original ter desaparecido.

Alguns indivíduos percebem halos ou auréolas brilhantes em torno de objetos (mesmo em iluminação comum) o que pode dificultar a distinção precisa dos contornos e gerar uma sensação de despersonalização do ambiente. 


Macropsia e micropsia
Simulação dos efeitos visuais de psicodélicos: macropsia e micropsia, além do filtro vívido puslsante, característicos de doses elevadas. Artista de efeitos visuais: Pedro Leão. Captação e direção: Felipe De Nadai.

Distorções no tamanho percebido dos objetos, nomeados de macropsia e micropsia, a primeira refere-se à ilusão de que as coisas estão maiores do que realmente são, enquanto a micropsia faz com que pareçam menores, muitas vezes de forma desproporcional, como em um efeito de lente deformada. É com estes sintomas que há o errôneo diagnóstico de AIWS.


Além dos sintomas comuns, a estigmatização e falta de compreensão sobre o HPPD podem impactar negativamente a vida dos indivíduos afetados. Muitos dos pacientes encontram com o transtorno após o uso recreativo/ilegal, trazendo consigo a barreira da proibição às drogas quando relatam seus episódios. Em mais uma triste história da probição, Andrew Callaghan narra que sua vida mudou do dia para noite após o uso de psilocibina aos 14 anos de idade com seu amigo. Andrew vive há mais da metade de sua vida com os sintomas do HPPD, hoje com 28 anos. O medo da represália de seus pais foi tamanha a ponto do rapaz não pedir ajuda por anos.


A percepção clínica errônea de que os sintomas são resultado de problemas psiquiátricos subjacentes, como esquizofrenia, psicose aguda, alucinações em vez de uma condição possível neurológica específica decorrida pelo contexto e características da experiência durante o uso de psicodélicos, pode levar a um diagnóstico inadequado e consequentemente a um tratamento ineficaz. 


O diagnóstico diferencial, no qual deve-se excluir a possibilidade de outros transtornos psicóticos primários, porém nota-se maior prevalência entre pessoas do sexo masculino e os efeitos são notados principalmente em adolescentes. Os  sintomas visuais semelhantes aos do HPPD podem ocorrer em distúrbios neurológicos como enxaqueca ou epilepsia do lobo temporal. Sintomas psicóticos podem ser confundidos com alucinações perceptivas do HPPD. Os sujeitos que apresentam HPPD (I ou II) raramente acreditam que as experiências visuais experimentadas são reais, tendo consciência de que os sinais visuais que observam são falsos, fator que pode levar à diferenciação diagnóstica de outros transtornos psiquiátricos. Não há delírios, apenas alucinações visuais com possibilidade de respostas cardíacas aos estímulos visuais.

Para diferenciar o HPPD de outros transtornos, é necessário realizar uma avaliação completa da história clínica do paciente, incluindo o uso prévio de substâncias psicodélicas, e realizar exames neurológicos e psiquiátricos detalhados.


O HPPD I tratado farmacologicamente ou não, na ausência de precipitadores adicionais agravantes como uso contínuo de substâncias, tende a desaparecer gradualmente. O HPPD I raramente se transforma em HPPD II.


Após o início do HPPD II, os episódios tendem a ocorrer com mais frequência, duração e intensidade. Os indivíduos podem sentir uma perda parcial ou completa de controle, onde a condição pode desencadear ou ser acompanhada Desrealização e Despersonalização. Sentimentos de impotência, avanço da deterioração geral, aumento da limitação perceptiva (visual, auditiva, sensório-motora), incapacidade funcional (como, por exemplo mas não apenas: ler em papel branco, ambientes com luminosidade intensa, telas de computador ou celulares, dias ensolarados, músicas estimulantes ao indivíduo…), debilitação, resistência ao tratamento e remissão lenta ou parcial podem converter o HPPD II em um transtorno mental grave como ansiedade generalizada, depressão refratária.



Tabela comparativa entre os diagnósticos diferenciais: 


Critério

HPPD (Tipo II) F16.7 – Transtorno residual/tardio

Flashbacks (Tipo I) (não codificado especificamente)

Intoxicação aguda por alucinógenos F16.0

Transtorno por uso de alucinógenos F16.1 / F16.2

Transtorno psicótico induzido por alucinógenos F16.5

Outros transtornos induzidos por alucinógenos F16.8

Natureza dos sintomas

Distorções visuais persistentes; insight preservado; pseudo-alucinações

Episódios breves e benignos; insight preservado

Alucinações completas, sinestesia, confusão durante uso

Sintomas de dependência ou uso nocivo (tolerância, fissura)

Delírios ou alucinações com comprometimento da realidade

Transtornos de humor ou ansiedade induzidos por alucinógeno

Duração

Crônica, meses a anos; curso oscilante; sofrimento persistente

Transitória (segundos a minutos), autolimitada

Horas a dias; reverte com eliminação da substância

Crônico ou intermitente conforme padrão de uso

Semanas a meses; pode persistir após abstinência

Depende do uso; geralmente extinguível com cessação

Início

Dias, semanas ou mais após uso; prodrômico possível

Após algumas experiências de uso, gatilhos estressantes

Durante ou logo após ingestão de alucinógeno

Inicia com padrão de consumo intenso ou repetitivo

Durante uso intenso ou na retirada; em indivíduos susceptíveis

Surge durante ou após uso prolongado ou em abstinência

Insight / Juízo da realidade

Preservado; reconhece distorções

Preservado; reconhece se tratar de flashback

Frequentemente prejudicado durante intoxicação

Variável; pode negar gravidade do uso

Comprometido; sintomas percebidos como reais

Geralmente preservado em relação ao humor ou ansiedade

Comorbidades / Impacto funcional

Alta comorbidade com ansiedade e depressão; impacto funcional significativo

Poucas comorbidade; pouco impacto funcional

Paranoia transitória ou risco operacional; reversível

Comorbidades psiquiátricas são comuns; prejuízo social e ocupacional

Vulnerabilidade psiquiátrica aumenta risco; impacto significativo

Sintomas emocionais afetam funcionalidade conforme intensidade


Estudos


Em 1988, um estudo foi realizado para investigar os efeitos do uso de LSD na visão humana. Observou-se que os usuários de LSD apresentaram uma adaptação ao escuro significativamente mais lenta em comparação com os não usuários. A adaptação ao escuro é um processo pelo qual os olhos aumentam sua sensibilidade à luz em condições de pouca iluminação. Os usuários de LSD também apresentaram uma taxa de fusão de cintilação deprimida. A taxa de fusão de cintilação, também conhecida como frequência crítica de fusão de cintilação, é a frequência na qual uma luz intermitente parece ser completamente estável para o observador. Em outras palavras, é a velocidade na qual uma luz piscante precisa piscar para que pareça constante para quem observa. Uma taxa de fusão de cintilação deprimida indica que essa frequência é mais baixa nos usuários de LSD, o que significa que eles precisam de uma luz piscante mais lenta para que ela pareça constante.


Esses resultados sugerem que em alguns indivíduos, o LSD pode ter efeitos duradouros no sistema visual, afetando tanto a adaptação ao escuro quanto a percepção da luz intermitente, dando a impressão de que todas as luzes “piscam levemente”.

Esses efeitos não aconteciam somente após o uso de LSD, mas também com outras substâncias psicodélicas/empatógenas/NSPs. 


Desenho de Leonardo DaVinci
Desenho (1493) de Leonardo DaVinci, mostrando a projeção dos olhos em direção aos ventrículos do cérebro. Extraído de Polyak (1957).

Porém, como a proibição afasta os usuários do conhecimento sobre drogas e de um controle de qualidade, raramente sabe-se exatamente o que e em qual quantidade foi ingerido. O relato pode ser de ter tomado um LSD, mas na realidade a substância de fato ingerida foi alguma da categoria do 25x-nbome, entre inúmeros outros análogos que simulariam os efeitos desejados além de contaminantes da própria manufatura em qualidade precária, como de substâncias adulterantes adicionadas intencionalmente. Os usuários estão sempre à mercê do produto mais potente sintetizado pelo menor preço, mesmo que não seja aquilo que ele gostaria de comprar, mas emule os efeitos imediatos sem considerar possíveis riscos.

      

No estudo conduzido por Abraham e Duffy em 2001, foi realizada uma análise comparativa dos espectros de eletroencefalografia (EEG) entre indivíduos diagnosticados com Perturbação da Percepção Persistente por Alucinógenos (HPPD) e aqueles sem o diagnóstico analisando a sincronia neural medida através de cálculos de coerência, que é uma medida de similaridade espectral ao longo de um período de tempo. A análise comparativa dos espectros de eletroencefalografia (EEG) é um método utilizado para comparar os padrões de atividade elétrica cerebral entre diferentes indivíduos ou condições. O EEG é um exame que mede a atividade elétrica do cérebro através de eletrodos colocados no couro cabeludo. Na análise espectral do EEG, o sinal elétrico é decomposto em diferentes frequências, cada uma representando um tipo específico de atividade cerebral. Envolve a comparação desses espectros de frequência entre diferentes grupos de indivíduos (por exemplo, indivíduos saudáveis versus indivíduos com uma determinada condição neurológica) ou entre diferentes condições para o mesmo indivíduo (por exemplo, em repouso versus durante uma tarefa cognitiva). A coerência é uma medida de similaridade espectral ao longo do tempo entre dois sinais EEG. Uma maior coerência indica que os dois sinais estão mais sincronizados, ou seja, têm uma relação de fase consistente. Isso pode ser usado para avaliar a conectividade funcional entre diferentes regiões do cérebro.



Caminhos neurais ópticos
Simplificação dos setores cerebrais ativados pelos estímulos visuais Fonte.

Por exemplo, no estudo supracitado encontrou-se uma maior coerência na região occipital do cérebro em indivíduos com Transtorno Perceptivo Persistente por Alucinógenos (HPPD), sugerindo uma hipersincronia neural nesta região. A região occipital está localizada na parte posterior e inferior do cérebro e está diretamente ligada ao processo visual, sendo que uma maior coerência nesta área sugere uma hipersincronia neural nesses indivíduos mesmo quando eles mantêm os olhos fechados, sem estímulos visuais. Essa descoberta sugere que as alucinações a longo prazo que ocorrem após a exposição ao LSD podem ser devidas às alterações fisiológicas no sistema visual e uma predisposição à ela. Curiosamente, essas percepções são facilitadas quando os indivíduos estão de olhos fechados ou no limiar entre a vigília e o sono REM, impedindo muitos pacientes de permitirem-se descansar. 


Realizada uma revisão sistemática de 66 publicações envolvendo 97 indivíduos com HPPD, identificaram-se 64 sintomas distintos, dos quais 76% correspondiam a distorções típicas da Síndrome de Alice no País das Maravilhas (AIWS), mais de 50% a manifestações não visuais e 38% a sintomas que não se relacionavam diretamente à intoxicação prévia de nenhum psicodélico; Quanto à escolaridade, embora menos da metade dos pacientes apresentasse cursar ensino superior, cerca de um terço abandonou o curso, mas aqueles com depressão concomitante (com ou sem ansiedade) exibiram sintomas mais persistentes e piores desfechos terapêuticos; ao contrário dos estados alterados de consciência da fase aguda do uso de psicodélicos, o HPPD caracteriza-se por alterações no conteúdo da percepção.


Um questionário on-line feito em 2011 coletou dados de 2.455 indivíduos, dos quais 60,6% relataram ter experimentado experiências visuais prolongadas após o uso de alucinógenos, porém apenas 4,2% relataram que os sintomas eram prejudiciais o suficiente para que fossem em busca de tratamento. No que diz respeito às substâncias, o LSD foi de longe a mais associada aos sintomas de tipo HPPD: 99,4 % dos participantes com sintomas visuais tinham histórico de uso de LSD. A psilocibina foi relatada por 87,7 %, e a mescalina por 47,1 % daqueles com sintomas visuais. Outros compostos relatados incluíram cannabis (90,9 %), MDMA (83,1 %), e substâncias como 2C‑B, DMT e salvinorina A, embora em proporções menores. No entanto, os autores destacam que não é possível inferir causalidade direta, já que a maioria dos participantes usava múltiplas substâncias. Quanto ao perfil demográfico, a idade média dos respondentes com sintomas visuais foi de aproximadamente 30 anos, sendo que a maioria relatou início dos sintomas ainda na faixa dos 20 anos. Em termos de sexo, 68,3 % dos participantes com sintomas visuais persistentes eram homens e 31,7 % mulheres, uma diferença menor do que em estudos clínicos com viés de notificação masculina. Não há dados para a população LGBTQIPN+.


Essa que é estimativa de prevalência replicada em todos os artigos sem haver questionamento. Afirmar que de 4,2% na população que utiliza psicodélicos em qualquer tipo de contexto desencadeia sintomatologia de HPPD demonstra a fragilidade da espinha dorsal de vários artigos. Esse é o estudo base para o DSM-V TR. Tá aí o pináculo da psiquiatria e psicologia baseada em evidências. 👏


Algo que os estudos trazem é que há uma maior incidência de HPPD entre indivíduos do sexo masculino e em adolescentes/jovens adultos. Por óbvio, mais dados são necessários para confirmar essas observações e entender as razões subjacentes para essas diferenças de prevalência, porém isso corrobora com o conhecimento clínico que pude adquirir até agora.


Mesmo com inúmeros estudos desde a década de 1960, com nomes proeminentes da história psicodélica se debruçando sobre essa classe de sintomas, a fisiopatologia exata do HPPD não é totalmente compreendida. Sugere-se que possa estar relacionada a alterações no processamento visual no cérebro. O diagnóstico do HPPD, como supracitado, deve ser diferenciado de outros transtornos psiquiátricos e não deve incluir a presença de delírios. Não há um tratamento específico para o HPPD, e os sintomas podem persistir por longos períodos em alguns casos. A abordagem de tratamento mais eficaz geralmente envolve suporte psicológico com profissional que entenda do distúrbio e não julgue a possível causa (uso de substâncias) e, em alguns casos, medicamentos para gerenciar sintomas como ansiedade ou depressão associados ao HPPD. Embora alguns estudos citados sugerem que alterações no processamento visual no cérebro possam desempenhar um papel importante no desenvolvimento do HPPD, ainda não está claro por que algumas pessoas desenvolvem essa condição após o uso de substâncias psicodélicas, enquanto outras não.


Possibilidades e hipóteses do HPPD



Devo ingressar na terceira e talvez última advertência: As situações que incluem o aparecimento do HPPD-II incluem uso de uma substância específica ou o poliuso, contendo experiência desafiadora sendo revivida ou mesmo sem conter a experiência desafiadora, porém com repetição contínua e desgastante dos efeitos psicodélicos/empatógenos. Todas essas palavras, tabelas, imagens e vídeos acima não estão à função de alarmar e sim de oferecer um espaço e caminho de escuta. A afirmação de que 4% da população de usuários de psicodélicos me parece errônea e com dados e metodologia incapazes de responder às questões basais da sintomatologia. A segunda afirmação da possível subnotificação é possível, sim, porém incongruente com os números reais: apenas no Céu da Nova Vida - igreja ligada aos Santo Daime, que serve chá composto ayahuasca -, mensalmente, a 1500 pessoas. Caso houvesse o mínimo resquício desse número de prevalência estar correto, em sete meses de funcionamento da Igreja, ao menos 40 pessoas necessitaria de auxílio em alguma clínica, ambulatório, UBS ou UPA. O local funciona desde 2001.


A abordagem de tratamento geralmente envolve suporte psicológico e, em alguns casos, medicamentos para ajudar a gerenciar sintomas como ansiedade ou depressão associados ao HPPD. Qualquer abordagem de tratamento deve ser personalizada para atender às necessidades específicas de cada indivíduo. Uma abordagem farmacológica para o tratamento do HPPD pode envolver o uso de medicamentos para tratar sintomas específicos ou para abordar os mecanismos subjacentes do transtorno, bem como explorar os possíveis denominadores comuns. Não há medicação que cure ou reduza todos os sintomas do HPPD, ao menos por enquanto. 


As dificuldades se apresentam de forma geral no âmbito social, ocupacional, inter e intrapessoal, impossibilitando o manejo das atividades do cotidiano. Esses casos não raramente são acompanhados de internamento involuntário, diagnósticos apressados e preconceitos. A meta é ter um profissional capacitado para não só acolher como indicar formas de reduzir os sintomas a curto e longo prazo.  Como abordado, as causas exatas do HPPD não são totalmente compreendidas, mas alguns pesquisadores sugerem que pode estar relacionado a alterações no processamento visual no cérebro após indicação de hiperexcitação no lobo occipital. Comumente, as alterações na percepção ocorrem em momento de rebaixamento de consciência, ao acordar ou ir dormir. 


Por não existir tratamento específico para o HPPD, os sintomas podem persistir por um longo período em alguns casos, e a eficácia dos medicamentos pode variar de pessoa para pessoa, sendo que em casos específicos há psicofármacos que tanto atenuam como enaltecem sintomas. O tratamento farmacológico deve ser acompanhado por terapia psicológica e suporte contínuo para ajudar os pacientes a lidarem com os sintomas e melhorar sua qualidade de vida.


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Printscreen da descrição na página do Reddit sobre HPPD.

Por ser algo de fato subnotificado, enquanto ainda assim, raro, o suporte comumente vem através da socialização desses sintomas em comunidade. No Brasil, não há nenhum instituto, associação ou grupo que conscientize sobre o HPPD. No Reddit, há um tópico específico para esses sintomas, e em 2025 conta com 14 mil pessoas inscritas, com subtópicos sendo adicionados a cada par de horas. Adentrar nestes relatos certamente trará sensações dúbias aos mais experientes psiconautas. As narrativas podem superar as contas dos anos em muitos dos casos, com experiências visuais que fogem à curva convencional descrita no DSM-V. Os tópicos estão em inglês, entretanto há possibilidade de realizar a tradução do conteúdo pelo seu navegador.


O uso de psicodélicos para além do contexto recreativo/ritualístico/exploratório pode nos permitir avaliar alguns dos motivos da prevalência do HPPD-II, além de aperfeiçoar técnicas de manejo e acolhimento aos pacientes que procuram auxílio. A expansão dos conhecimentos a respeito já pode elucidar algumas das dúvidas de alguns profissionais da saúde que lidam com situações emergenciais nos ambulatórios de hospitais gerais com leitos psiquiátricos. Embora a suposta prevalência seja baixa, não há taxas específicas sobre a incidência dos efeitos persistentes desencadeadores de distúrbios perceptivos, embora em linhas gerais a literatura não indique que haja casos deflagrados após uso ritualístico/religioso, porém aqui a subnotificação por conta da proibição desempenha seu papel.


Há um fato interessante sobre os estudos: em sua grande maioria são oriundos de usuários do mercado não regulado, vivendo a matrix proibicionista que impede as pessoas de procurarem a ajuda nessa roleta russa química composta por inúmeros análogos e adulterantes, Qual é a garantia que os dos estudo X, Y, Z de fato ingeriram LSD e não um de seus análogos?  Mesmo embora Stanislav Grof tenha relatado emergências psicodélicas já na década de 1960 os estudos envolvendo a classificação dos pacientes e seus sintomas são muito escassos para desenhar um panorama tanto de motivos como prognóstico.



céu do mapiá
Centenas de pessoas se reúnem na sessão de abertura da Igreja da Floresta, no Céu do Mapiá, no Amazonas, em 2023. São aproximamente 12 horas de barco ria acima para para chegar ao local.

Pouco, ou quase nada, se sabe sobre os conteúdos emergidos durante a experiência psicodélica de cada um dos pacientes nos estudos. É uma grande repetição daquilo que vemos no convencional: agentes de saúde alheios às experiências psicodélicas, sua usabilidade, histórico e diagnosticam à partir de critérios de manuais já bem elucidados que são errôneos e limitados. Haveria uma relação entre os efeitos ocorridos durante o uso e a reexperiência traumática dos elementos? Ou seja: experiências desafiadoras poderiam ser catalisadoras do HPPD? Podemos indicar que pode haver relação. Prevalência indubitável no sexo masculino? Também há um grande indicativo de que sim, entretanto há fatores que podem influenciar da questão do gênero como disparidade de dosagem. Outra inferência é sobre a idade dos pacientes: em sua maioria jovens, com menos de 30 anos de idade. Os casos de adolescentes relatando os efeitos contínuos do HPPD não são raros.


Mulher fuma cigarro usando fogo do DSM 5
Print-screen de um meme que circula na internet Um dos muitos usos do DSM-5. Pode ser visto por completo aqui.

Talvez, uma última advertência, mesmo que fora do previsto seja benéfica: aqui não há uma primazia ou deleite pela investigação e nomeação de diagnósticos. Concomitante à toda crítica feita ao DSM-V ou ao CID 10/11, estes são métodos de exercer o direito no SUAS/Loas para benefício continuado. Por mais que cada um dos critérios diagnóticos sejam falhos, incompletos, deteriorados pela hiperidentificação do campo da saúde mental com a neurociência e pela péssima qualidade do material contido no DSM, é apenas através de suas siglas que os pacientes conseguem benefícios aqui, no mundo real, que é bem difernete do mundo ideal. Leiam essa colcha de retalhos moral que é o DSM. Não voemos tão alto a ponto de perdermos vista dos caminhos.


O leitor deve ter reparado que há uma variedade significativa de nomenclaturas e diagnósticos, além de ser algo especialmente complexo de radicalizar - chegar à raiz - quando o véu moralista do desconhecimento acomete os profissionais de saúde que estão na ponta do atendimento emergencial: local onde geralmente os pacientes chegarão. Os hospitais gerais, UPAs, UBSs, ambulatórios e enfermarias são os pontos de aproximação entre a população que desconhece o que possivelmente sofre e os agentes de saúde. 


Com quem falar? Pode entrar em contato através deste formulário. ou com os profissionais da TRIP - Terapeutas em Rede pela Integração Psicodélica.



Referências


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