O congresso brasileiro de psicologia aconteceu em Brasília, nos dias 17, 18 e 19 de outubro de 2024, e abre alas para o complexo debate sobre psicodélicos e maconha no Brasil e no mundo. O Supremo Tribunal Federal (STF) divulga em setembro do mesmo ano o acórdão RE 635.659, a decisão dos ministros em mais de 700 páginas de argumentação sobre o posse de maconha para uso pessoal, bem como recentemente, o Food and Drug Administration (FDA) rejeita - por enquanto - a terapia com MDMA, requisitando novos ensaios. Brasília, a capital política do país, torna-se representante de um local simbólico, real e imaginário para discutir o tema, considerando o papel das políticas públicas e o avanço da regulamentação de substâncias psicodélicas e da maconha no Brasil.
Simbólico
O congresso "Maconha e psicodélicos: ética, saberes ancestrais e desafios da atuação" reflete uma crescente necessidade de entender o papel dos psicodélicos não apenas no contexto da clínica psicológica, mas também nas tradições e práticas culturais que há milênios fazem uso dessas substâncias. Nesse sentido, o objetivo principal foi criar uma ponte entre o conhecimento tradicional, baseado em práticas de cuidado e conhecimentos e visões de povos indígenas e comunidades tradicionais, com o saber acadêmico-científico, que busca – de forma muito tardia - legitimar o uso terapêutico para suas práticas. O título deixa claro que há uma tentativa de preocupação ética não apenas com o uso individual, mas com a confluência de diferentes saberes, reconhecendo o impacto das políticas proibicionistas no Brasil.
Organizado por instituições de grande relevância nacional, com destaque para o Conselho Federal de Psicologia (CFP), autarquia federal que regulamenta a prática da psicologia no Brasil, Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), uma das maiores instituições de pesquisa em saúde do país. Além disso, a Associação Psicodélica do Brasil (APB) teve um papel importante no apoio ao grupo de trabalho que deu origem ao evento, como representação ad-hoc do Dr. Sandro Rodrigues. Esse congresso é a soma dos esforços de muitas pessoas, usuários, ativistas, psicólogos, pacientes, médicos, neurocientistas, instituições de ensino, organizações não governamentais e advogados.
Os principais palestrantes incluíram nomes já conhecidos às áreas de psicologia, psiquiatria, neurociência e antropologia que estudam essas substâncias e suas práticas de uso nos contextos mais variados além de líderes comunitários e religiosos que trouxeram à tona as perspectivas de uso ritualístico/religioso dos psicodélicos e usos terapêuticos da maconha. Ainda sobre o título: o uso direto e explícito da palavra "maconha" em vez de termos como "cannabis", ou "cânabis" que por vezes servem para suavizar o estigma social implica o fato que o conselho de classe dos psicólogos, ao nomear esse termo abertamente, demonstra um movimento de ressignificação e enfrentamento aos tabus em torno do tema. Possibilitando um arcabouço imaginário com novos signos, permitindo uma abertura no espaço-tempo para discutir o espectro dos psicodélicos nas ciências psi – psicologia e psiquiatria e suas tecnologias de cuidado herdadas –, ao demonstrar como essas disciplinas têm avançado (ou não) no uso das substâncias psicodélicas para tratamento de transtornos mentais, como depressão, ansiedade e estresse pós-traumático. Esse movimento está em sintonia com o que ocorre em outros países, onde o uso de psicodélicos para fins terapêuticos tem ganhado terreno, especialmente em países como em alguns estados dos Estados Unidos, Canadá, Austrália e Jamaica. No Brasil, no entanto, o caminho é mais complexo devido ao enredo proibicionista que mantém o script regulatório, sob uma densa colcha de retalhos que dá menos cobertura do que há corpo para cobrir, mesmo que eventos como este indiquem que o debate está avançando em direção a uma possível mudança de paradigma, os pesos e contrapesos do passado intrinsecamente moral requerem atenção constante.
Embora indubitavelmente proibicionista, o Brasil possui uma privilegiada riqueza psicodélica e canábica cultural que não pode ser ignorada no debate, citando brevemente os usos de plantas denominadas sagradas a algumas etnias e grupos religiosos, como é o caso da ayahuasca e da jurema, por exemplo, que já é regulamentado em contextos religiosos específicos, o que mostra que o país tem um potencial para avançar em termos de legislação, desde que os debates éticos e científicos sejam devidamente aprofundados. Um ponto de convergência para que essas discussões sejam formalizadas e levadas a esferas maiores, como a política e a sociedade civil e sociedade originárias é a nossa urgência. Devemos lembrar que a legislação atual sobre Ayahuasca não teve como amostra as inúmeras organizações indígenas que fazem o uso ritualístico/religioso da composto amazônico.
Tomo um tempo aqui para citar que minha relação com o tema dos psicodélicos tem já seus carnavais e invernos, que atravessam tanto o campo acadêmico quanto experiências pessoais de vida. Sou psicólogo e membro efetivo da Associação Psicodélica do Brasil, uma organização que tem contribuído significativamente para o avanço das discussões sobre a aplicação terapêutica dessas substâncias no país. No entanto, neste congresso em específico, eu estava representando o Conselho Regional de Psicologia do Paraná (CRP 08), em uma delegação composta por cinco psicólogos. Esse envolvimento oficial reforçou ainda mais minha conexão com o evento e com os debates em torno dos psicodélicos e da maconha. Minha jornada acadêmica com as substâncias psicoativas começou em 2012, ainda durante a passagem pelo curso de Direito, com o foco inicial nas questões jurídicas e regulatórias que envolvem o uso dessas substâncias, principalmente no contexto brasileiro. Contudo, à medida que meus interesses migraram para a psicologia, percebi que havia muito mais a ser explorado, especialmente no que diz respeito ao potencial terapêutico dessas substâncias em contextos clínicos e ritualísticos. Minha formação e experiência prática em psicologia me permitiram ampliar a visão sobre o uso de psicodélicos, não apenas como um tema de estudo acadêmico, mas como uma área de grande relevância para a prática psicológico. O fato de ter participado do evento representando o CRP 08 foi particularmente significativo,sendo justamente do CRP 08, no Paraná, que surgiu a proposta que daria origem ao tema do congresso. Esse tema, inicialmente concebido no Paraná, foi sendo lapidado e refinado ao longo do tempo e das instâncias, até chegar à versão final que vemos no título do congresso.
Como mencionado pelo conselheiro Fábio Lopes, do CRP 08, esse processo foi resultado de um esforço democrático dentro do sistema conselhos, onde a temática foi discutida e aprovada em várias instâncias. Segundo Fábio,
"[] ... o tema foi proposto em congresso regional no Paraná, ganhou corpo no congresso nacional e, posteriormente, na APAF, até a formação do GT que conduziu esse trabalho."
Essa fala de Fábio Lopes destaca o caráter colaborativo e democrático da construção desse congresso. Não foi um evento construído às pressas ou imposto de cima para baixo, mas sim o resultado de anos de discussão, amadurecimento e engajamento de diferentes profissionais da área da psicologia. Isso reflete a seriedade com que o tema dos psicodélicos está sendo tratado, não apenas como uma curiosidade acadêmica ou como um modismo terapêutico, mas como uma área legítima de estudo e prática clínica, com implicações éticas, científicas e políticas. Os psicodélicos estão atravessando uma barreira hemato-paradgmática.
Imaginário
Quando recebi a notícia de que o CFP estaria organizando um congresso com o tema “Maconha e Psicodélicos: ética, saberes ancestrais e desafios da atuação”, minhas expectativas foram imediatamente elevadas. Um evento dessa natureza, organizado por uma autarquia federal como o CFP, naturalmente gera uma série de expectativas, especialmente considerando a seriedade com que os Sistema Conselhos abordam temas polêmicos e muitas vezes estigmatizados. Vindo de um histórico de negativas dentro da academia para ao menos pesquisar essas substâncias ou imaginar pontes de intersecções entre a clínica psicológica e o uso de substâncias. Nisso, Pedro Bicalho, presidente do Conselho Federal de Psicologia, destacou que, embora algumas proibições tenham sido abolidas legalmente, ainda persistem nas mentes e atitudes das pessoas, e eu adiciono: contagiando instituições, práticas e profissões.
Mesmo sabendo que o encontro traria discussões profundas e qualificadas, muitas vezes conflitantes, confesso que o nível do debate superou as minhas expectativas. Como ressaltou o presidente do CFP, durante sua fala de encerramento, "falar sobre maconha dentro de um conselho de classe como o de psicologia não é uma tarefa fácil". Ele mencionou que esse é um tema que toca em muitas feridas sociais, e que lidar com isso dentro do campo da psicologia exige não apenas conhecimento técnico, mas também coragem. Nas palavras de Bicalho,
"[] ... nomear como 'maconha' aquilo que é 'maconha' já é, por si só, um ato de enfrentamento ao proibicionismo e ao conservadorismo que ainda permeia nossas instituições."
Essa escolha, de fato, carrega uma carga intensa em signos e símbolos. Rapidamente os programas policias em jornais televisivos expondo as apreensões de tabletes de maconha. Homens, em sua grande maioria negros, encapuzados, empunhando armas, em constante contenção policial nas suas comunidades. Já a "cannabis" é um termo que muitas vezes é usado para suavizar o estigma associado à planta, tornando-a mais palatável para certos públicos. No entanto, ao optar por utilizar o termo popular "maconha", a organização do congresso faz um movimento corajoso, de trazer à baixo esse imaginário carregado de símbolos batidos e que não tem correspondência com a totalidade (ou tonalidade?) do real. E isso é fundamental, porque o uso de psicodélicos e de maconha não se restringe a um nicho de profissionais privilegiados ou acadêmicos distantes da matrix cada vez mais decadente que distancia socialmente grupos já estigmatizados do cuidado total. Esses temas envolvem, na base, questões de desigualdade social, de criminalização e de estigmatização de populações inteiras ao longo dos séculos, com um alvo em constante mudança.
Não se tratava de um evento introdutório, voltado para convencer o público sobre os benefícios terapêuticos dos psicodélicos, mas ao contrário: o congresso partiu de um nível já bastante avançado, apresentando pesquisas de ponta e discussões altamente politizadas. Houve pouco ou nenhum espaço para apresentações que tentassem "vender" a ideia dos psicodélicos como algo novo ou revolucionário. Em vez disso, os participantes, tanto palestrantes quanto o público, já estavam imersos em um contexto de conhecimento profundo sobre o tema. Foi construído um ambiente de debate altamente enriquecedor, onde questões complexas e muitas vezes negligenciadas em outros fóruns puderam ser trazidas à tona. Houve um cuidado especial em integrar conhecimentos científicos com saberes ancestrais, e em respeitar a pluralidade de experiências e contextos em que os psicodélicos são utilizados, incluindo o uso recreativo, exploratório em contextos de festa ou não. Esse cuidado foi evidente em várias palestras e debates, que destacaram a importância de não desvincular essas substâncias de suas raízes culturais e espirituais.
O Dr. Sandro Rodrigues, cofundador da Associação Psicodélica do Brasil (APB),trouxe uma perspectiva de como a APB se consolidou como um ator fundamental no cenário nacional, mobilizando não só o campo científico, mas também a sociedade civil para discutir o uso de psicodélicos no Brasil. Já com quase uma década de existência, a APB nasce na Marcha da Maconha do Rio de Janeiro e desde então espalhou-se em inúmeras outras Marchas Brasil adentro.
Logo depois, Fábio Lopes, conselheiro do CRP-08 e colega no Conselho Estadual de Política sobre Drogas do Paraná, tomou a palavra. Fábio trouxe um contexto muito importante sobre como chegamos até esse congresso, lembrando que, desde 2020, ele foi um dos proponentes do tema, articulando discussões que ganharam força nos últimos anos. Sua fala foi carregada de emoção ao celebrar esse momento histórico para a psicologia brasileira e o avanço no conhecimento sobre psicodélicos e maconha no contexto terapêutico. Fábio destacou o papel da psicologia em abrir espaço para essas discussões e como a categoria tem sido corajosa ao trazer termos como "maconha" para o centro do debate, reforçando o compromisso com a inclusão de populações historicamente vulnerabilizadas.
Real
Uma das falas mais poderosas foi a de Fernanda Kaingang, advogada indígena e diretora do Museu Nacional dos Povos Indígenas. Como parte do povo Kaingang, do Sul do Brasil, Fernanda trouxe à tona a dura realidade enfrentada pelas comunidades indígenas ao longo de mais de 500 anos de colonização e expropriação. Seu discurso desceu como corredeiras, intrépido, impactando os participantes na abertura do evento. Os saberes ancestrais de cura e espiritualidade dos povos indígenas têm sido sistematicamente apropriados pela ciência ocidental e pela indústria de substâncias psicodélicas. Sua crítica não amaciou o dito conceito de "detentores de saberes", perpetuando uma idealização distante aos que já estavam nessa terra antes dos colonizadores, em vez de "proprietários", ressaltando a importância de garantir que os direitos sobre esses conhecimentos sejam respeitados.
A pesquisa acadêmica sobre os saberes tradicionais não saiu impune, em sua etimologia e teleologia, apontadas as hipocrisia das políticas que tratam os indígenas como "invisíveis" enquanto exploram seus conhecimentos sem retribuição. Fernanda, em sua fala esmagadora, expôs a necessidade de reparação e equidade nas relações entre as universidades e os povos indígenas e a importância de reconhecer a propriedade intelectual dos saberes indígenas. O atual movimento psicodélico precisa enfrentar essa história de horror cíclica, que se repete sempre que o saber indígena é apropriado e transformado em produto. Segundo ela, sem o devido reconhecimento e reparação, qualquer avanço no campo dos psicodélicos será apenas mais um capítulo da colonização em curso. Foi um lembrete contundente de que, para avançarmos nesse campo, precisamos levar em consideração as vozes das comunidades que, por muito tempo, foram excluídas e silenciadas enquanto subprodutos em pesquisas científicas.
Os desafios regulatórios e as questões ético-políticas envolvidas no uso de psicodélicos no Brasil foram amplamente chacoalhadas na fala de Fernando Beserra, psicólogo e cofundador da APB. Onde trouxe uma crítica lúcida ao conceito de "renascimento psicodélico", muitas vezes propagado como uma narrativa do Norte Global, desconectada das realidades locais e da história da contracultura e das comunidades marginalizadas no Brasil. Ele destacou que o uso de substâncias psicodélicas, desde os anos 1960, esteve intrinsecamente ligado à contracultura e a movimentos de resistência política. No entanto, com o avanço das regulamentações e da legalização, há um risco de que esse movimento seja cooptado por interesses de uma elite que historicamente exclui populações mais vulneráveis e ditas marginalizadas. Como ele mesmo afirmou: "A regulação elitista dos psicodélicos, como estamos vendo em algumas partes do mundo, pode facilmente excluir aqueles que mais precisam dessas práticas, como os povos indígenas, negros e comunidades pobres. Precisamos lutar por uma regulação inclusiva, que integre os psicodélicos ao SUS e valorize a perspectiva de redução de danos".
Elucidou questões fundamentais sobre a saúde mental dos trabalhadores envolvidos nas clínicas de psicoterapia com cetamina, alertando para o impacto que esse novo campo pode ter nas condições de trabalho e nos direitos desses profissionais. Ele se posicionou firmemente em favor de uma regulamentação que garanta não apenas o acesso aos tratamentos, mas também a proteção dos direitos dos trabalhadores que atuam em redução de danos em festa e o fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS).
Ao longo do congresso, mesas redondas e debates exploraram temas fundamentais como a regulamentação dos psicodélicos, as terapias psicodélicas e o impacto dessas práticas nas populações tradicionais e marginalizadas. Um dos painéis mais impactantes discutiu os marcos legais e as políticas públicas, destacando o caminho para a legalização no Brasil e a necessidade de reparação social para as comunidades afetadas pela proibição. As discussões sobre a integração de psicoterapias, incluindo a cetamina e outras substâncias em contextos terapêuticos, trouxeram uma forte dimensão ético-política, com ênfase na inclusão e na redução de danos. O evento foi um ponto de encontro entre profissionais da saúde mental, ativistas, líderes comunitários e o público em geral, criando um espaço para o aprofundamento de questões éticas, culturais e científicas sobre o uso de psicodélicos. O impacto intergeracional do congresso também foi notável. Havia jovens estudantes de graduação, curiosos e entusiasmados, lado a lado com mestres, doutores e pós-doutores, todos participando ativamente das discussões. Esse encontro de gerações mostrou o quanto o tema dos psicodélicos está se expandindo e sendo abraçado por diferentes faixas etárias e níveis de experiência profissional. Minhas expectativas eram altas, e o congresso superou muitas delas: a profundidade das discussões, a coragem na abordagem e a integração de diferentes saberes tornaram este evento um marco histórico para a psicologia no Brasil, impulsionando o debate sobre os psicodélicos para um novo patamar.
Os encaminhamentos dados durante o congresso a) pautar o requerimento da abolição do crime aos apenados com quantidade menor que 40g de maconha, b) que se pense quais os futuros para a formação desses terapeutas que atuarão no campo e c) que os pajés, lideranças indígenas e comunitários seja outorgados os títulos de doutor honoris pelas universidades federais brasileiras.
O real foi dito. E o real dói.
O deserto desse real
Inegavelmente esse congresso divide afetos dentro da categoria. Muitos colegas pensam que não se deveria gastar dinheiro do CFP em eventos dessa natureza, ainda mais com esse nome. A experiência que podemos tirar é que os olhos devem estar abertos. Dois dias não são o bastante para, nem introdutória nem profundamente, tocar o tema dos psicodélicos e da maconha, isso, contando os dois como temas que se assemelham, porém são separados em farmacologia, etiologia e posologia. O real, ou hiper real, é que demonstrado na concomitância de influências: existente um grupo que aceita os possíveis benefícios dos psicodélicos e da maconha, há, naturalmente um segundo grupo oposto que nega veementemente as camadas terapêuticas que possam ser descobertas que surge. E enquanto isso, o assunto dos abusos realizados em terapias no norte global ou mesmo nas clandestinas que ocorrem, pouco tiveram holofotes, os valores exorbitantes das formações, a já batida falta de representatividades nos ensaios e protagonismo psicodélico, bem como a tentativa ativa de captura de patentes ainda ficaram para um próximo encontro. Não acredito que se torne um "na volta a gente compra", mas os olhos e ouvidos estão atentos.
"O Real dói."
Fabuloso!